O mistério e o fascínio do Santo Sudário



A ciência revela: o lençol de Turim não é uma fraude. E retoma o estudo da mais famosa relíquia do mundo
O Sudário, tal como aparece a olho nu

O Sudário de Turim — uma peça de linho que a tradição diz ser o lençol mortuário de Jesus — abriga pólens de plantas que só existem na região de Jerusalém e cuja data é anterior ao século 8 d.C. — podendo provir de épocas bem mais antigas. A informação foi divulgada, em agosto último, pelo botânico Avinoam Danin, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Ela derruba definitivamente a tese de que o Sudário seria uma falsificação produzida na Europa durante a Idade Média. Essa idéia, comunicada de maneira sensacionalista em 1988, baseava-se numa única prova: a datação da relíquia, realizada pelo método do carbono 14, que fixou como período de sua fabricação os anos compreendidos entre 1260 e 1390 d.C. A opinião pública embarcou nessa tese, sem atentar para os seguintes fatos:
1 - O Sudário já passou por milhares de testes
2 - De todos os experimentos, só o do carbono 14 contestou a autenticidade da peça
3 - Os especialistas se opuseram à utilização dessa técnica, devido à grande contaminação que o pano sofreu ao longo dos séculos
4 - Harry Gove, o principal responsável pela datação, admitiu que a contaminação podia ter falseado os resultados do teste.
A idéia da falsificação está agora descartada.
A existência dos pólens era conhecida pelos pesquisadores desde 1973, mas essa informação foi atropelada pelo rolo compressor do teste do carbono 14. Ela devolve ao estudo do Sudário a seriedade que o assunto merece. E chama a atenção para um "detalhe" que os autores da tese da falsificação se esqueceram de explicar: como foi produzida a imagem gravada no tecido?
A Síndone (outro nome pelo qual é conhecido o Sudário, derivado da palavra grega sindón, que significa lençol) apresenta uma imagem muito tênue e invertida. Ela é reinvertida e revela detalhes espantosos, quando observada no negativo fotográfico. Esse fato causou enorme surpresa ao advogado italiano Secondo Pia, que, em 1898, fez a primeira foto do lençol. Surpresa ainda maior ocorreria quase cem anos mais tarde, em 1974, quando se descobriu que a imagem comportava também uma informação tridimensional. Verificou-se que era possível relacionar de maneira rigorosa a intensidade das marcas produzidas no tecido com a distância que supostamente havia separado pontos do pano do corpo morto. Com base nisso, dois pesquisadores americanos, John Jackson e Eric Jumper, utilizando um computador da Nasa, fizeram, em 1978, uma reconstituição volumétrica integral do corpo. Não se conhece nenhuma imagem como essa. Para alguns, ela é uma prova da ressurreição de Jesus. Para outros, continua sendo um mistério insondável. A ciência ainda está longe de explicá-lo. Mas já lançou muita luz sobre ele, como se verá nas páginas a seguir.
O homemMarcas do açoite e da crucifixão
O lençol apresenta uma imagem dupla, ventral e dorsal, de um homem nu, em tamanho natural. Os pesquisadores americanos Kenneth Stevenson e Gary Habermas calculam que ele tinha entre 30 e 35 anos, aproximadamente 1,80 m de altura e 79 kg de peso. "Era um homem musculoso, habituado ao trabalho manual", afirmam. Dale Stewart, do Museu Smithsoniano de História Natural, dos Estados Unidos, diz que a barba, o cabelo e os traços faciais são característicos do grupo racial semita.
Cabelos trançadosO historiador inglês Ian Wilson foi o primeiro a chamar a atenção para o formato da longa mecha de cabelo que cai sobre o meio das costas. Ela assemelha-se muito a uma trança desmanchada. Trançar os cabelos atrás do pescoço era uma moda comum entre os homens judeus do tempo de Jesus. As numerosas marcas de ferimentos que aparecem no homem do Sudário revelam que ele foi brutalmente açoitado, coroado com espinhos, crucificado e perfurado com lança do lado direito do tórax. Pierre Barbet, cirurgião do hospital Saint-Joseph, de Paris, e outros especialistas em anatomia e medicina legal antes e depois dele estudaram exaustivamente essas marcas. E concluíram que elas correspondem, nos mínimos detalhes, às narrativas sobre a flagelação, morte e sepultamento de Jesus que aparecem nos Evangelhos. E que acrescentam informações desconhecidas pela tradição cristã, mas confirmadas pela recente pesquisa histórica e arqueológica — como o fato de o crucificado ter sido pregado à barra horizontal da cruz pelos pulsos e não pelos meios das mãos. É impossível acreditar que falsificadores medievais pudessem saber de tudo isso. Além de dominar uma técnica de impressão sem paralelos na história, eles precisariam ter conhecimentos de arqueologia, história, anatomia e fisiologia que só se tornaram disponíveis no século 20.
idéia de que os homens do passado seriam muito baixos baseia-se nas dimensões das armaduras medievais. Mas não leva em conta que estas geralmente pertenciam a jovens pagens e não a cavaleiros adultos. A altura média dos judeus adultos do século 1 era de 1,77 ou 1,78 m.
A imagem dramática que aparece no negativo fotográfico
Entre 1978 e 1981, um grupo internacional de cientistas do mais alto nível, reunidos no Projeto de Pesquisa do Sudário de Turim, dedicou, em conjunto, quase 150 mil horas de trabalho à análise do lençol mortuário. E chegou à conclusão de que a figura que nele aparece não é uma representação, mas uma imagem misteriosamente produzida pelo corpo que ele envolveu. Este apresenta uma grande quantidade de feridas, com uma precisão de detalhes simplesmente espantosa. É o caso, por exemplo, dos halos formados em torno das manchas de sangue, decorrentes da separação entre a parte sólida e o soro. Segundo os pesquisadores do projeto, o corpo exibe sinais indiscutíveis de morte e rigidez, mas nenhum indício de decomposição – informação que foi interpretada por muitos como uma das provas da ressurreição.
O "mapa" do Sudário, feito sobre o negativo fotográfico do lençol, revela os seguintes elementos:

 queimaduras devidas ao incêndio que danificou o Sudário em 1532;
 remendos aplicados, em 1534, sobre as partes destruídas do tecido;
 manchas produzidas pela água utilizada para apagar o fogo;
 ferimentos causados pelos açoites nas costas; gotas de sangue provocadas por perfurações na cabeça; ferida decorrente do transpassamento do pulso esquerdo;rastros do sangue que escorreu pelos antebraços durante a crucifixão; ferida causada por transpassamento no lado direito do tórax; rastro do sangue que escorreu da ferida do tórax; mancha de sangue resultante do transpassamento dos pés; contusão produzida pelo transporte da barra horizontal da cruz (círculos nas costas).



O pano
Fibras que não existiam na Europa
A reconstituição volumétrica do rosto do Sudário, feita por computador
O Sudário é uma peça contínua de puro linho, com 4,36 m de comprimento, 1,10 m de largura e 0,34 mm de espessura. O pano, produzido em tear manual, é muito rústico. E as técnicas de fiação e tecelagem nele utilizadas eram amplamente difundidas no Oriente Médio, na época de Jesus, tendo sido encontrados vários similares. A celulose das fibras apresenta-se degradada. E o tecido, originalmente branco-marfim, exibe uma coloração amarelo-palha, por efeito de oxidação.
Além do linho, a Síndone contém vestígios de fibras de um tipo de algodão do Oriente Médio, o Gossypium herbaceum. Isso leva a crer que o pano tenha sido tecido num tear previamente utilizado na confecção de peças de algodão. O que é mais um argumento a favor da origem oriental do Sudário, pois, como lembra John Tyrer, pesquisador do Instituto Têxtil de Manchester, Inglaterra, o algodão não era cultivado na Europa, durante a Idade Média.
A impressão
A luz ofuscante que chamuscou o lençol
No esforço quase irracional de negar a autenticidade do Sudário, alguns estudiosos lançaram mão de todo tipo de hipótese para explicar a formação da imagem: pintura, compressão do tecido sobre o corpo de um cadáver untado com óleos, frotagem do linho sobre um baixo-relevo e até uma fotografia produzida em plena Idade Média. Nenhuma dessas idéias resistiu às análises científicas. As pesquisas mostraram que:
1 - a imagem não apresenta contornos nítidos, nem linhas que seguem direções preferenciais, como ocorre com todo o desenho, pintura ou frotagem;
2 - apesar de o linho ser fino, a imagem é superficial e não aparece do outro lado do pano, ao contrário do que aconteceria com uma pintura, compressão ou frotagem;
3 - não há vestígios de pigmentos, tintas ou vernizes, nem da difusão de líquidos através da trama do tecido (exceto nas marcas de sangue e nas manchas de água);
4 - a imagem não apresenta as deformações que seriam inevitáveis se o lençol tivesse sido comprimido sobre um cadáver (nesse caso, devido à tridimensionalidade do corpo, partes como o nariz, por exemplo, produziriam uma impressão bem mais larga do que o normal);
5 - a imagem dorsal não é mais intensa nem mais profunda do que a frontal, o que seria de se esperar no caso de uma impressão por contato; ambas têm características idênticas, como se, no instante da formação da figura, o corpo, deitado, apresentasse peso zero
6 - o tratamento da imagem por computador produziu uma forma tridimensional proporcionada e sem distorções, o que jamais ocorre em casos de pintura ou fotografia.
O brilho emanou do corpoDescartadas todas essas hipóteses, como explicar a impressão? Alguns cientistas sugerem que uma imagem como essa só poderia ser produzida se, numa fração de segundo, o corpo tivesse emitido um clarão equivalente ao da luz solar ou de uma explosão nuclear, como a da bomba de Hiroshima. Pela análise da figura, conclui-se que essa luz não foi refletida pelo corpo, como ocorre numa fotografia, mas emanou dele mesmo, chamuscando o pano.
Sinais que confirmam narrativa da Bíblia Alguns estudiosos já chamaram o Sudário de "O Quinto Evangelho". Pois, tanto quanto os textos de Marcos, Mateus, Lucas e João, ele forneceria informações preciosas sobre a tortura, a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus. A diferença é que e sse evangelho puramente visual quase nada oferece ao olhar apressado e desatento. Ele exige uma observação respeitosa, acurada e paciente, de preferência mediada pelos óculos da ciência. Aí, sim, o Sudário apresenta uma quantidade esmagadora de informações. E desvela a história de um sacrifício capaz de emocionar até o mais insensível dos observadores. É difícil sair ileso do confronto com as lições desse pano milenar.
A coroa de espinhos não era uma simples tiara, mas um artefato que cobria a cabeça toda. O soldado que a urdiu deve ter usado seu próprio capacete como molde. Os espinhos, com 5 centímetros de comprimento, causaram 72 perfurações na cabeça
A flagelação foi tão brutal que, por si só, teria matado uma pessoa mais frágil. Ela acelerou a morte do homem do Sudário, abreviando sua permanência na cruz. Foram contados de 90 a 120 ferimentos causados pelo açoite. A forma das feridas corresponde às produzidas pelo flagrum, o chicote romano
Os condenados não carregavam a cruzes completas, mas apenas as barras horizontais. Os mastros ficavam pré-fixados no local de execução. Mesmo assim, o transporte da trave provocou grandes hematomas nas costas do homem do Sudário. E quedas ao longo do percurso machucaram seus joelhos e rosto. A rótula esquerda e o nariz apresentam contusões graves – com a provável separação da cartilagem nasal
Os pregos não foram fixados no meio das mãos, como se pensa. Mas numa parte do pulso conhecida pelos anatomistas como "espaço de Destot". Se o transpassamento tivesse ocorrido no meio das mãos, estas teriam rasgado com o peso do corpo. Ao passo que, no "espaço de Destot", a introdução dos pregos assegurava uma fixação firme à cruz. A perfuração dos pulsos seccionou os nervos medianos, provocando a retração dos polegares. Estes estão dobrados para o interior das mãos na figura do Sudário
O poste da cruz não era alto. E a barra horizontal se encaixava nele por meio de uma fenda. O estudo dos rastros de sangue mostra que o homem foi pregado à barra sobre o chão, sendo depois alçado até o topo do mastro. Seus pés – o esquerdo sobre o direito – foram fixados ao poste por um único prego, de cerca de 18 centímetros



As moedas
Objetos do tempo de Pôncio Pilatos
Aimagem tridimensional, produzida por computador, trouxe um argumento espetacular a favor da autenticidade do Sudário. Sobre as pálpebras do homem foram descobertos dois objetos arredondados, que não são visíveis a olho nu nem no negativo fotográfico. O pesquisador americano Francis Filas, da Universidade Loyola, de Chicago, identificou um dos artefatos: trata-se de uma moeda, o dilepton lituus, produzida na Palestina sob o governo de Pôncio Pilatos, entre os anos 29 e 32 d.C. O segundo objeto foi identificado pouco depois: uma outra moeda, cunhada por Pilatos em homenagem a Júlia, mãe do imperador romano Tibério, em 29 d.C. Colocar moedas sobre os olhos do morto, para manter as pálpebras fechadas, fazia parte dos ritos funerários judaicos da época de Jesus.
O incêndio
As chamas que danificaram a relíquia
O Código de Pray aparece na parte inferior da imagem
O que primeiro chama a atenção de quem olha o Sudário é um conjunto de manchas simétricas, dispostas ao longo de duas linhas longitudinais, que percorrem o pano de uma extremidade à outra. Elas são conseqüência do incêndio que, na noite de 3 para 4 de dezembro de 1532, queimou a capela do castelo de Chambéry, na França, onde estava guardada a relíquia. Dobrada em 48 camadas, a Síndone encontrava-se então dentro de uma caixa de madeira fechada, revestida de prata por fora e de veludo por dentro. Derretida pelo calor, a prata gotejou sobre uma das bordas do tecido, produzindo uma queimadura que, devido às dobras, danificou simetricamente o Sudário.
A chamada área da imagem, felizmente, foi pouco atingida. Mas alguns pedaços do pano queimaram completamente, tendo sido remendados, dois anos mais tarde, pelas freiras clarissas da capela de Chambéry. Além do fogo, também a água utilizada para apagar o incêndio produziu marcas na Síndone, formando halos ao longo do eixo central e nas margens longitudinais do pano. Um desses halos formou-se exatamente acima da cabeça da figura, outro no plexo solar e um terceiro na região dos joelhos, dando à imagem um aspecto ainda mais hierático e misterioso.
O Sudário apresenta também quatro grupos de pequenos furos, resultantes de uma queimadura bem mais antiga. O Código de Pray, um manuscrito de 1192-1195 (portanto anterior à suposta idade da Síndone estabelecida pelo teste do carbono 14), mostra o corpo morto de Jesus envolvido num pano que exibe furos idênticos aos do Sudário. Parece óbvio que o autor do Código o utilizou como modelo.
O carbono
Como a fumaça confundiu o exame
Há uma enorme probabilidade de que a fumaça produzida durante o incêndio de Chambéry tenha contaminado o Sudário, depositando em suas fibras o carbono de outras substâncias presentes. Isso é mais do que uma simples hipótese. Pois o cientista russo Dmitri Kuznetsov, prêmio Lênin de ciência, resolveu reproduzir as mesmas condições em laboratório. "Apareceu com clareza uma grande troca entre o gás carbônico do ambiente e o tecido, a qual modificou o conteúdo de carbono 14 do último", disse". A troca foi bem elevada: cerca de 25% do total. Isso falseou os resultados do exame, e, realizado o teste com radiocarbono, o linho pareceu muito mais recente do que era na realidade." Esse experimento, por si só, desqualifica completamente a datação do Sudário feita pelo método do carbono 14.
Os pólens
Traços deixados pela coroa de espinhos
Obotânico israelense Uri Baruch analisou o pólen achado no Sudário e concluiu que ele provém de plantas que só podem ser encontradas numa única localidade do mundo: a região de Jerusalém. E numa única época do ano: os meses de março e abril. Um desses pólens corresponde à espécie Gundelia tournefortii, que, segundo os especialistas, teria sido utilizada na confecção da coroa de espinhos. Pólens desta e de outras espécies também foram encontrados no chamado Sudário de Oviedo, um lenço guardado na cidade do mesmo nome, na Espanha. De acordo com vários estudiosos, essa peça de linho, de 83 por 52 centímetros, teria sido colocada sobre o rosto de Jesus, já recoberto pela Síndone. De fato, o Evangelho de João refere-se a mais de um pano funerário (capítulo 20, versículos 6 e 7) e as pesquisas mostraram que os vestígios presentes nos dois tecidos coincidem perfeitamente. Entre esses vestígios, foram identificadas 70 manchas de sangue, que se sobrepõem de maneira exata. Como a existência do Sudário de Oviedo é documentada desde o século 8, os pesquisadores israelenses concluíram que o lençol de Turim não poderia ser posterior a essa data.
A existência dos pólens orientais não é novidade para os estudiosos. Em 1973, o criminologista suíço Max Frei recolheu diversas amostras do pó acumulado entre as fibras do Sudário. E constatou a existência de pólens de nada menos que 58 variedades diferentes de plantas. Algumas dessas plantas são comuns na França e Itália — o que não causa surpresa, já que durante muito tempo o lençol ficou abrigado nessas regiões. Mas há também pólens de plantas características da Turquia oriental, confirmando a tradição de que, antes de chegar à Europa, o Sudário permaneceu durante séculos em terras bizantinas. Mais importante ainda: em sua lista, Max Frei identificou pólens não de uma ou duas, mas de várias espécies de plantas que são típicas da região de Jerusalém ou em outras áreas dos territórios israelense e palestino.
As marcas da agonia e do sepultamento
A morte na cruz era causada por lenta asfixia, provocada pela posição dos braços. A imagem do Sudário mostra que o homem se ergueu várias vezes para tomar ar. Visando acelerar a morte, era costume quebrar as pernas dos condenados, impedindo tal movimentação. Isso não ocorreu neste caso – o que concorda com o relato dos Evangelhos, segundo os quais nenhum de seus ossos foi quebrado
A estocada de lança, que era um golpe de misericórdia, ocorreu quando o homem já se encontrava morto. O Sudário mostra que ela produziu um forte jato de hemácias (a parte vermelha do sangue), seguido de um fluxo de plasma (a parte clara) – prova de que grande quantidade de sangue se acumulou e decantou no pericárdio. Isso converge com a texto bíblico, que fala num jorro de "sangue e água"
A deposição da cruz também ficou registrada no pano de linho. Nas manchas de sangue existentes na região dos pés, percebe-se nitidamente as marcas dos dedos das mãos de uma das pessoas que sustentou o morto na descida do patíbulo. "Seriam os dedos do apóstolo João?", perguntam-se alguns estudiosos
O sepultamento foi feito após uma preparação sumária do corpo. Se ele tivesse sido lavado, conforme o costume judaico, o sangue não haveria manchado o Sudário. Também aqui há uma convergência com a descrição bíblica, que sugere um apressamento dos ritos funerários, devido à aproximação do Shabat, o dia do repouso judaico, que começa a ser contado a partir do crepúsculo da sexta-feira. A proximidade entre o queixo e o peito, na imagem formada na Síndone, deve-se ao fato da cabeça do morto ter sido apoiada sobre um suporte. Embaixo, o corpo envolto no lençol. E o Sudário – sem o seu conteúdo –·encontrado pelos discípulos



Os ícones
Feições semíticas e barba
A face de Cristo em reconstituição tridimensional
Por volta do século 4, ocorre uma mudança radical na representação artística de Cristo. Ele deixa de ser mostrado como um homem imberbe, com penteado romano, e passa a ser representado com feições semíticas e barba. Isso coincide com a descoberta do chamado Mandylion de Edessa, que muitos pesquisadores identificam com o Sudário.
Uma das primeiras obras artísticas dessa nova fase é o Cristo Pantocrator do Sinai, pintado no século 6 e conservado até hoje no mosteiro de Santa Catarina, no Egito. Esse ícone ainda impressiona pelo realismo, beleza e majestade. Utilizando uma sofisticada técnica de superposição de imagens, o pesquisador americano Alan Whanger, da Universidade de Durham, na Carolina do Norte, obteve nada menos do que 170 pontos de congruência entre sua figura e a face impressa na Síndone. Isso sugere que, mais de sete séculos antes da época atribuída ao Sudário pela datação do carbono 14, o artista que pintou o ícone pode tê-lo utilizado como modelo.
Ainda mais impressionantes são os 250 pontos de congruência existentes entre a imagem da Síndone e o chamado Cristo Pantocrator de Dafne, um mosaico bizantino que domina a cúpula da igreja do Mosteiro de Dafne, situado entre Atenas e Elêusis, na Grécia. Ele foi produzido por volta do ano 1100 — portanto, de 160 a 290 anos antes das datas estabelecidas pelo carbono 14.
Às portas do ano 2000, o pano que inspirou essas obras de arte continua desafiando a inteligência humana. A seu respeito foram escritos mais de 500 livros. E ele já foi investigado pela ciência como nenhum outro objeto existente na Terra. Cada nova tecnologia desvendou nele um detalhe ainda mais surpreendente. Seu mistério e fascínio parecem inesgotáveis.
O termo grego Pantocrator pode ser traduzido como " Todo Poderoso" . A figura do Cristo Pantocrator é o tema mais difundido na arte bizantina
ConsultoresEsta reportagem contou com a inestimável consultoria de dois pesquisadores brasileiros do Sudário: o cirurgião buco-maxilo-facial Nobol Fukushima e a psicóloga e teóloga Maria Beatriz Ribeiro Gandra. A eles os nossos agradecimentos
Anote
Livros
  • O Sudário, de Emanuela Marinelli, Ed. Paulus
  • A Verdade sobre o Sudário, de Kenneth Stevenson e Gary Habermas, Ed. Paulinas
  • O Santo Sudário, de Ian Wilson, Ed. Melhoramentos
  • The Mysterious Shroud, de Ian Wilson e Vernon Miller, Ed. Image/Doubleday
  • Sindone, la Prova, de Pierluigi Baima Bollone, Ed. Mondadori
Internet


A saga do lençol, dos discípulos aos cavaleiros templários
Um longo intervalo separa a morte de Jesus da aparição do Sudário na França, em 1356. Essa lacuna é preenchida quando se associa o lençol ao Mandylion, uma relíquia venerada em Bizâncio durante séculos. Que objeto era esse? Diz uma lenda que o próprio Jesus enviou a Abgar V, soberano de Edessa (atual Urfa, na Turquia), um retrato seu, criado milagrosamente, quando enxugou o rosto numa toalha. Esse pano, conhecido como Mandylion, serviu de modelo para a arte bizantina. Vários pesquisadores crêem que o Mandylion era o próprio Sudário. Para ocultar sua natureza de lençol mortuário, seus guardiães o dobraram e puseram num relicário, deixando visível apenas o rosto. Essa hipótese explica a semelhança existente entre os ícones bizantinos e o Sudário. E permite construir a seguinte cronologia:
30 d.C. – morte de Jesus. O discípulo Tadeu leva o Sudário a Edessa;
57 – perseguição aos cristãos em Edessa. O lençol é escondido num nicho;
525 – inundação de Edessa. Durante a reconstrução, o Mandylion é descoberto;
639 – conquista de Edessa pelos muçulmanos. O culto ao Mandylion é preservado;
943 – cerco de Edessa pelos bizantinos. Estes prometem poupar a cidade em troca do Mandylion. Após muita relutância, os muçulmanos entregam a relíquia;944 – chegada triunfal do Mandylion a Constantinopla;
1201 – um inventário de relíquias bizantinas refere-se claramente ao Sudário;1204 – os cruzados saqueiam Constantinopla. O Mandylion (ou Sudário) é ocultado pela Ordem dos Cavaleiros Templários;
1306 – Jacques de Molay, grão-mestre da ordem, leva o tesouro dos templários para a França;
1314 – os templários são queimados como hereges;
1356 – Geoffrey de Charny, parente de um dos mestres templários, doa o Sudário à igreja de Lirey;
1357 – primeira exposição pública do Sudário na França.

Uma resposta cristã ao racionalismo




Apresentamos a terceira meditação do Advento pronunciada pelo pregador da Casa Pontifícia, Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap, diante de Bento XVI e da Cúria Romana.

"Estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança" (1Pe 3,15).

1. A razão usurpadora
O terceiro obstáculo que faz parte da cultura moderna, "refratária" ao Evangelho, é o racionalismo. Sobre isso falaremos nesta última meditação do Advento.
O cardeal e, agora, Beato John Henry Newman, deixou-nos um discurso memorável, proferido em 11 de dezembro de 1831, na Universidade de Oxford, intitulado The Usurpation of Raison, a usurpação ou a prevaricação da razão. Neste título já está a definição do que entendemos como racionalismo [1]. Numa nota explicativa a este discurso, escrita no prefácio à sua terceira edição, de 1871, o autor explica o que quer dizer com esse termo. Por usurpação da razão - diz - se entende "certo abuso generalizado dessa faculdade quando se fala de religião sem um conhecimento íntimo ou sem o respeito devido aos princípios fundamentais desta. Essa ‘razão' é chamada ‘sabedoria do mundo' nas Escrituras é a compreensão de religião dos que têm a mentalidade secularista e se baseiam em máximas do mundo, que lhes são intrinsecamente alheias" [2].
Em outro de seus sermões na universidade, intitulado "Fé e Razão comparadas", Newman ilustra por que a razão não pode ser o juiz supremo em matéria de religião e de fé, com a analogia da consciência:
"Ninguém - escreve - dirá que a consciência se opõe à razão, ou que seus preceitos não podem ser apresentados em forma de argumento; no entanto, quem, a partir disso, argumentará que a consciência não é um princípio original, mas que, para atuar, precisa atender o resultado de um processo lógico-racional? A razão analisa os fundamentos e os motivos da ação, sem ser ela mesma um destes motivos. Portanto, a consciência é um elemento simples da nossa natureza e, no entanto, suas operações admitem ser justificadas pela razão, sem com isso depender realmente dela [...]. Quando se diz que o Evangelho exige uma fé racional, pretende-se dizer somente que a fé concorda com a reta razão em abstrato, mas não que seja realmente seu resultado" [3].
Uma segunda analogia é a da arte. "O crítico de arte - escreve - avalia o que ele mesmo não sabe criar, assim também a razão pode dar sua aprovação ao ato da fé, sem por isso ser a fonte da qual a fé emana" [4].
A análise de Newman possui recursos novos e originais: destaca a tendência, imperialista, por assim dizer, da razão a submeter todo aspecto da realidade aos próprios princípios. É possível, entretanto, considerar o racionalismo ainda de um outro ponto de vista, intimamente ligado ao anterior. Para ficar na metáfora política empregada por Newman, podemos definir como atitude de isolamento, de fechar-se a essa mesma razão. Isso não consiste tanto em invadir o campo de outros, mas em não reconhecer a existência de outro campo fora do seu próprio. Em outras palavras, na negação de que possa haver verdade fora da que passa através da razão humana.
Desse modo, o racionalismo não nasceu com o iluminismo. É uma tendência contra a qual a fé sempre teve de lidar. Não só a fé cristã, mas também a hebraica e a islâmica, pelo menos na Idade Média, conheceram esse desafio.
Contra essa afirmação de absolutismo da razão, levantou-se em cada época a voz não só de homens de fé, mas também de militantes no campo da razão, filosofia e ciência. "O ato supremo da razão, escreveu Pascal, está em reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a sobrepassam" [5]. No mesmo instante em que a razão reconhece seu limite, ela o rompe e o supera. É por obra da razão que se produz este reconhecimento que é, por isso, um ato puramente racional. Essa é, literalmente, uma "douta ignorância" [6]. Um ignorar "com conhecimento de causa", sabendo que se está ignorando.
Devemos, portanto, dizer que estabelece um limite para a razão e a humilha aquele que não reconhece nela esta capacidade de transcender-se. "Até agora, escreveu Kierkegaard, sempre se falou assim: ‘Dizer que não se pode entender esta coisa ou aquela não satisfaz a ciência que deseja conhecer'. Esse é o erro. É preciso dizer exatamente o oposto: onde a ciência humana não quer reconhecer que há algo que ela não pode compreender ou - ainda mais preciso - qualquer coisa que da qual a ciência, pode entender com clareza ‘que não pode entender', então tudo estará desordenado. É, portanto, uma tarefa do conhecimento humano compreender que existem essas coisas e quais são essas coisas que ela não pode compreender" [7].
2. Fé e sentido do sagrado
Espera-se que este tipo de desafio mútuo entre fé e razão continue no futuro. É inevitável que cada época refaça o caminho por conta própria, mas nem os racionalistas converterão as pessoas de fé e nem serão convertidos por elas. É preciso encontrar uma maneira de romper com esse círculo e liberar a fé desse gargalo. Em todo esse debate sobre a razão e a fé, é a razão que impõe sua escolha e força a fé, por assim dizer, a jogar fora de casa e na defensiva.
Disso, o cardeal Newman estava bem consciente, e, em outro de seus discursos universitários, adverte contra o risco da mundanização da fé em seu desejo de correr atrás da razão. Ele dizia entender, embora sem poder aceitar plenamente, as razões dos que são tentados a separar completamente a fé da investigação racional, por causa do "antagonismo e das divisões fomentadas da argumentação e debates, a confiança orgulhosa que geralmente acompanha o estudo das provas apologéticas, a frieza, o formalismo, o espírito secularista e carnal, enquanto a Escritura fala da religião como de uma vida divina, radicada no afeto e manifestada na graça espiritual" [8].
Em todo trabalho de Newman sobre a relação entre razão e fé, então não menos debatida que hoje, há uma ressalva: não é possível combater um racionalismo com outro, talvez contrário. É necessário encontrar outro caminho que não pretenda substituir a da defesa racional da fé, mas, que, pelo menos, a acompanhe, ainda porque os destinatários do anúncio cristão não são os intelectuais, capazes de envolver-se nesse tipo de confronto, mas a massa de pessoas comuns indiferente a isso e mais sensível a outros argumentos.
Pascal propunha o caminho do coração: "O coração tem razões que a própria razão desconhece" [9]; os românticos (Schleiermacher, por exemplo) propunham o do sentimento. Ainda existe, penso, um caminho a percorrer: a da experiência e do testemunho. Não pretendo aqui falar da experiência pessoal, subjetiva, da fé, mas de uma experiência universal e objetiva que podemos, por isso, fazer valer mesmo no confronto com pessoas alheias à fé. Ela não nos leva à fé plena e salvadora, a fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado, mas pode ajudar a criar nessas pessoas a base que é a abertura ao mistério, a percepção de algo que está acima do mundo e da razão.
A contribuição mais notável que a moderna fenomenologia da religião ofereceu à fé, principalmente na forma que ela toma na clássica obra de Rudolph Otto, "O Sagrado" [10], é ter demonstrado que a afirmação tradicional que de existe algo que não se explica com a razão, não é um pressuposto teórico ou de fé, mas um dado primordial de experiência.
Existe um sentimento que acompanha a humanidade desde seus primórdios até o presente em todas as religiões e culturas: o autor o chama de o sentimento do numinoso. (No intuito de elucidar as características irracionais peculiares do sagrado, o autor cria o neologismo numinoso, derivado do termo latino numen, que significa deidade ou influxo divino. Explica ele que o elemento numinoso pode ser identificado como um princípio ativo presente na totalidade das religiões, portador da ideia do bem absoluto. Quando se refere ao numinoso, esclarece que é "uma categoria especial de interpretação e de avaliação e, da mesma maneira, de um estado de alma numinoso que se manifesta quando esta categoria se aplica, isto é, sempre que um objeto se concebe como numinoso", N. da T.) [11]. Esse é um dado primário, irredutível a qualquer outro sentimento ou experiência humana; toma o homem como uma emoção quando, por qualquer circunstância externa ou interna a ele, se encontra diante da revelação do mistério "tremendo e fascinante" do sobrenatural.
Otto designa o objeto desta experiência com o adjetivo "irracional" (o subtítulo da obra é "Sobre o Irracional na Ideia do Divino e sua Relação com o Irracional"); mas toda a obra demonstra que o sentido que ele dá ao termo "irracional" não é o de "contrário à razão", mas o de "além da razão", de não traduzível em termos racionais. O numinoso se manifesta em graus diferentes de pureza: do estado mais bruto, que é a reação mais inquietante suscitada pelas histórias de espíritos e fantasmas, ao estado mais puro, que é a manifestação da santidade de Deus - o Qadosh bíblico - como na célebre cena da vocação de Isaías (Is 6, 1ss).
Se é assim, a evangelização do mundo secularizado passa também pela recuperação do sentido do sagrado. O terreno de cultura do racionalismo - sua causa e, ao mesmo tempo, seu efeito - é a perda do sentido do sagrado. É necessário, por isso, que a Igreja ajude os homens a subir a montanha e redescobrir a presença e a beleza do sagrado no mundo. Charles Péguy disse que "a assustadora penúria do sagrado é a marca profunda do mundo moderno". Isso é evidente em cada aspecto da vida, mas especialmente na literatura e na linguagem de todos os dias. Para muitos autores, ser definido como "dessacralizado" não é mais uma ofensa, mas um elogio.
A Bíblia foi acusada por vezes de ter "dessacralizado" o mundo por ter perseguido ninfas e divindades das montanhas, dos mares e dos bosques e ter feito destas simples criaturas a serviço do homem. Isso é verdade, mas foi justamente despojando-lhes desse falso pretexto de divindade que a Escritura pôde restituir-lhes sua genuína natureza de "sinal" do divino. A Bíblia combate a idolatria das criaturas, não sua sacralidade.
Assim, "secularizado", o criado tem agora mais poder de provocar a experiência do numinos e do divino. De uma experiência desse gênero carrega o sinal, em minha opinião, a célebre declaração de Kant, o representante mais ilustre do racionalismo filosófico:
"Duas coisas enchem o coração de admiração e veneração, sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão se dirige e se consagra a elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim (...); o primeiro espetáculo, de uma inumerável multidão de mundos, aniquila, por assim dizer, a minha importância, por ser eu uma criatura animal que deve voltar à matéria de que é formado o planeta (um simples ponto no Universo) depois de (não se sabe como) ter sido dotada de força vital durante curto espaço de tempo. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente o meu valor, como o de uma inteligência por minha personalidade, na qual a lei moral me manifesta uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o mundo sensível (1994, p.102)" [12].
Um cientista vivo, Francis Collins, há pouco nomeado acadêmico pontifício, em seu livro "A Linguagem de Deus", descreve assim o momento de sua volta à fé: "Numa bela manhã de outono, enquanto, pela primeira vez, passeando pela montanha, fui empurrado para o oeste do Mississipi, a majestosidade e beleza da criação venceram minha resistência. Entendi que a busca tinha chegado ao fim. Na manhã seguinte, quando o sol surgiu, ajoelhei-me sobre na grama molhada e me rendi a Jesus Cristo" [13].
As mesmas descobertas maravilhosas da ciência e da tecnologia, ao invés de levarem ao desencantamento, podem chegar a ser ocasiões de admiração e de experiência do divino. O momento final da descoberta do genoma humano é descrito pelo próprio Francis Collins, que foi o chefe da equipe que chegou a tal descoberta, "uma experiência de exaltação científica e ao mesmo tempo de adoração religiosa". Entre as maravilhas da criação, nada é mais maravilhoso que o homem e, no homem, sua inteligência criada por Deus.
A ciência se desespera agora para tocar um limite extremo na exploração do infinitamente grandioso que é o universo e na exploração do infinitamente pequeno que são as partículas subatômicas. Alguns fazem desta "desproporção" um argumento a favor da inexistência de um Criador e da insignificância do homem. Para os crentes, esses são o sinal por excelência não só da existência, mas também dos atributos de Deus: a vastidão do universo é sinal de sua infinita grandeza e transcendência; a pequenez do átomo, da sua imanência e da humildade da sua encarnação, que o levou a fazer-se criança no seio de uma mãe e minúsculo pedaço de pão nas mãos do sacerdote.
Mesmo na vida humana, não faltam ocasiões nas quais é possível fazer a experiência de uma "outra" dimensão: a paixão, o nascimento do primeiro filho, uma grande alegria. É preciso ajudar as pessoas a abrir os olhos e reencontrar a capacidade de surpreender-se. "Quem se surpreende, reinará", afirma um ditado atribuído a Jesus fora dos Evangelhos [14]. No romance "Os Irmãos Karamazov", Dostoiévski refere as palavras que o starets Zózimo, ainda um oficial do exército, fala aos presentes, no momento em que, tocado pela graça, renuncia a duelar com o adversário: "Senhores, olhai em volta os dons de Deus: este céu límpido, este ar puro, essa grama terna, estes passarinhos; a natureza é tão bela e inocente, enquanto nós, só nós, estamos longe de Deus e somos estúpidos e não compreendemos que a vida é um paraíso, uma vez que seria suficiente que quiséssemos compreender e, imediatamente aquilo se instauraria com toda sua beleza e nós nos abraçaríamos e romperíamos em lágrimas" [15]. Este é o verdadeiro sentido da sacralidade do mundo e da vida!
3. Necessidade de testemunhas
Quando a experiência do sagrado e do divino chega súbita e inesperada de fora de nós e é acolhida e cultivada, torna-se experiência subjetiva vivida. Temos assim as "testemunhas" de Deus que são santos e, de modo especial, uma categoria destes, os místicos.
Os místicos, segundo uma definição célebre de Dionísio o Areopagita, são aqueles que "padeceram Deus" [16], isto é, participaram e viveram o divino. São, para o restante da humanidade, como exploradores que entraram primeiro, secretamente, na Terra Prometida e depois voltaram para contar o que tinham visto - "uma terra que emana leite e mel" - e exortar todo o povo a atravessar o Jordão (cf. Nm 14,6-9). Por meio deles, chegam a nós, nesta vida, os primeiros raios da vida eterna.
Quando lemos seus escritos, parecem distantes e até ingênuos os mais sutis argumentos dos ateus e racionalistas! Nasce, na relação com estes últimos, um sentido de surpresa e até de lástima como diante de alguém que fala de coisas que não conhece. Como alguém que acreditasse ter descoberto contínuos erros de gramática num interlocutor e não se desse conta que este está simplesmente falando uma outra língua que ele não conhece. Mas não há nenhuma vontade de confronto, mesmo as palavras em defesa de Deus parecem, naquele momento, vazias e fora de lugar.
Os místicos são, por excelência, aqueles que descobriram que Deus "existe", e mais ainda, que não somente existe realmente como infinitamente mais real que aquilo que chamamos realidade. Foi precisamente de um destes encontros que uma discípula do filósofo Husserl, judia e ateia convicta, uma noite descobriu o Deus vivo. Falo de Edith Stein, depois Santa Teresa Benedita da Cruz. Hospedada por amigos cristãos, quando estes precisaram ausentar-se uma noite, sozinha na casa e sem saber o que fazer, tomou um livro da biblioteca dos amigos e começou a ler. Era a autobiografia de Santa Teresa de Ávila. Atravessou a noite lendo. Chegada ao final, exclamou simplesmente: "Esta é a verdade!" No início da manhã, foi à cidade para comprar um catecismo católico e um missal e, depois de tê-los estudado, dirigiu-se a uma igreja próxima e solicitou o Batismo ao sacerdote.
Eu também fiz uma pequena experiência do poder que os místicos têm de fazer-nos tocar o sobrenatural. Era o ano em que se discutia muito o livro de um teólogo intitulado "Existe Deus? ("Existiert Gott?"); mas, terminada a leitura, poucos estavam preparados para trocar o ponto de interrogação do livro para o de exclamação. Indo a um congresso, tinha levado comigo o livro dos escritos da Beata Angela de Foligno, que eu ainda não conhecia. Fiquei literalmente deslumbrado; levava o livro comigo nas conferências, abria-o a cada intervalo e, no final, eu o fechei dizendo a mim mesmo: "Se Deus existe? Não só existe, mas é realmente fogo devorador!".
Infelizmente, certa moda literária conseguiu neutralizar até a "prova" viva da existência de Deus que são os místicos. E o fizeram com um método único: não reduzindo seu número, mas aumentando-o; não restringindo o fenômeno, mas expandindo-o dramaticamente. Me refiro àqueles que, numa resenha sobre místicos, em antologias de seus escritos ou numa história da mística colocam lado a lado, como parte do mesmo gênero de fenômenos, São João da Cruz e Nostradamus; santos e excêntricos; mística cristã e cabala medieval; hermetismo, teosofismo, formas de panteísmo e até alquimia. Os verdadeiros místicos são outra coisa e a Igreja tem razão de ser rigorosa no juízo sobre eles.
O teólogo Karl Rahner, tomando, ao parecer, uma frase de Raimondo Pannikar, afirmou: "O cristão de amanhã, ou será um místico, ou não será". Tentava dizer que, no futuro, manter viva a fé dependerá do testemunho de pessoas que possuem uma profunda experiência de Deus, mais que a demonstração de sua plausibilidade racional. Paulo VI dizia, no fundo, a mesma coisa quando afirmava, na Evangelii nuntiandi (n.41): "O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas".
Quando o apóstolo Pedro recomendava aos cristãos a estar "prontos a dar razão da vossa esperança" (1Pe 3,15), é certo, no contexto, que ele não falava da razão especulativa ou dialética, mas da razão prática, ou seja, da sua experiência de Cristo, unida ao testemunho apostólico que a garantia. Num comentário a este texto, o cardeal Newman fala de "razões implícitas" que são, para os crentes, mais intimamente persuasivas que as razões explícitas e argumentativas [17].
4. Um salto de fé no Natal
Chegamos, assim, à conclusão prática que mais nos interessa numa meditação como esta. Da irrupção imprevista do sobrenatural na vida não precisam só os que não creem e os racionalistas; necessitamos também nós, crentes, para reanimar a nossa fé. O maior perigo que correm as pessoas religiosas é de reduzir a fé a uma sequência de ritos e de fórmulas, repetidas, mesmo que com cuidado, mecanicamente e sem a íntima participação de todo o ser. "Esse povo me procura só de palavra, honra-me apenas com a boca, enquanto o coração está longe de mim. Seu temor para comigo é feito de obrigações tradicionais e rotineiras" (Is 29, 13).
O Natal pode ser uma ocasião privilegiada para ter esse salto de fé. Isso é a suprema "teofania" de Deus, a mais alta "manifestação do Sagrado". Infelizmente, o fenômeno do secularismo está despojando esta festa de seu caráter de "mistério tremendo" - isto é, que induz ao santo temor e à adoração - para reduzi-lo somente ao aspecto de "mistério fascinante". Fascinante, o que é pior, somente no sentido natural, não sobrenatural: uma festa dos valores familiares, do inverno, da árvore, das renas e do Papai Noel. Existe, em alguns países, a intenção de trocar o nome de "Natal" por "festa da luzes". Em poucos casos a secularização é tão visível como no Natal.
Para mim, o caráter "numinoso" do Natal está ligado a uma memória. Assisti, um ano, à Missa do Galo, presidida por João Paulo II, em São Pedro. Chegou o momento do canto da Kalenda, ou seja, a solene proclamação do nascimento do Salvador, presente no antigo Martirológio e reintroduzida na liturgia natalina depois do Vaticano II:
"Tendo transcorridos muitos séculos desde a criação do mundo
Treze séculos depois da saída de Israel do Egito
Na centésima nonagésima quarta Olimpíada
No ano 752 da fundação de Roma
No quadragésimo segundo ano do Império de César Augusto
Jesus Cristo, Deus eterno e Filho eterno do Pai, tendo sido concebido por obra do Espírito Santo, tendo transcorrido nove meses, nasce em Belém da Judeia, da Virgem Maria, feito homem."
Chegados a estas últimas palavras, senti aquilo que se chama "unção da fé": uma repentina clareza interior, pela qual me lembro de dizer a mim mesmo: "É verdade! É tudo verdade isto que se canta! Não são somente palavras. O eterno entra no tempo. O último evento da série rompeu a série; criou um "antes" e um "depois" irreversível (olimpíada número tal, reinado de tal...); agora tudo ocorre em relação a um único evento". Uma súbita comoção atravessou toda a minha pessoa, enquanto só podia dizer: "Obrigado, Santíssima Trindade; e obrigado também a Vós, Santa Mãe de Deus!".
Ajuda muito a tornar o Natal a ocasião para um salto de fé, encontrar espaços de silêncio. A liturgia envolve o nascimento de Jesus no silêncio: "Dum medium silentium tenerent omnia", enquanto tudo em volta era silêncio. "Stille Nacht", noite de silêncio, é chamado o Natal num dos mais populares e amados cantos natalinos. No Natal, devemos sentir como dirigido a nós o convite do Salmo: "Parai! Sabei que eu sou Deus, excelso entre as nações, excelso sobre a terra" (Sl 46,11).
A Mãe de Deus é o modelo insuperável deste silêncio natalino: "Maria, porém, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2, 19). O silêncio de Maria no Natal é mais que um simples calar-se; é maravilha, é adoração, é um "religioso silêncio", um ser "oprimido pela realidade". A interpretação mais real do silêncio de Maria é aquela encontrada nos antigos ícones bizantinos, onde a Mãe de Deus aparece imóvel, com o olhar fixo, os olhos arregalados, como quem viu algo que as palavras não podem expressar. Maria, antes de todos, elevou a Deus o que São Gregório Nazianzeno chama "um hino de silêncio" [18].
Vive realmente o Natal quem é capaz de fazer hoje, depois de tantos séculos, o que teria feito se estivesse presente naquele dia. Quem faz o que Maria ensinou: ajoelhar-se, adorar e calar!
[1] J.H. Newman, Oxford University Sermons, London 1900, pp.54-74; trad. Ital. di L. Chitarin, Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 2004, pp. 465-481.
[2] Ib.p. XV (trad. ital. Cit. p.726).
[3] Ib., p. 183 (trad. ital. Cit. p.575).
[4] Ibidem.
[5] B.Pascal, Pensieri 267 Br.
[6] S. Agostino, Epist. 130,28 (PL 33, 505).
[7] S. Kierkegaard, Diario VIII A 11.
[8] Newman, op. cit., p. 262 (trad. ital. cit., p. 640 s).
[9] B. Pascal, Pensieri, n.146 (ed. Br. N. 277).
[10] Otto, Rudolf (1992) O Sagrado. Sobre o Irracional na Ideia do Divino e sua Relação com o Irracional. Lisboa: Edições 70.
[11] Bay, Dora (2004) Fascínio e Terror: O Sagrado. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, número 61, Universidade Federal de Santa Catarina.
[12] E. Kant, Textos seletos. Introdução de Emmanuel Carneiro Leão. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
[13] F. Collins, The Language of God. A Scientist Presents Evidence for Belief, Free Press 2006, pp. 219 e 255.
[14] In Clemente Alessandrino, Stromati, 2, 9).
[15] F. Dostoevskij, I Fratelli Karamazov, parte II, VI,
[16] Dionigi Areopagita, Nomi divini II,9 (PG 3, 648) ("pati divina").
[17] Cf. Newman, "Implicit and Explicit Reason", in University Sermons, XIII, cit., pp. 251-277
[18] S. Gregorio Nazianzeno, Carmi, XXIX (PG 37, 507).

Uma resposta cristã ao secularismo


Apresentamos a segunda pregação do Advento pronunciada pelo pregador da Casa Pontifícia, Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap, diante de Bento XVI e da Cúria Romana, na Capela Redemptoris Mater do Palácio Apostólico Vaticano, sobre o tema da resposta cristão ao secularismo.




“A Vida Eterna que a vós anunciamos” (1Jo 1,2)

1. Secularização e secularismo

Nesta meditação, veremos o segundo obstáculo que a evangelização no mundo ocidental moderno encontra: a secularização. No Motu Proprio com o qual o Papa criou o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, é dito que este “está a serviço das Igrejas particulares, especialmente naqueles territórios de antiga tradição cristã onde se manifesta mais claramente o fenômeno da secularização”.

A secularização é um fenômeno complexo e ambivalente. Pode significar a autonomia das realidades terrenas e a separação entre o reino de Deus e o reino de César e, neste sentido, não só não é contra o Evangelho, mas encontra nele uma de suas raízes profundas. Pode, no entanto, indicar também todo um conjunto de atitudes contrárias à religião e à fé, pelo qual é preferível usar o termo secularismo. O secularismo está para secularização assim como o cientificismo para a ciência e o racionalismo à racionalidade.

Cuidando dos obstáculos ou desafios que a fé encontra no mundo moderno, referimo-nos exclusivamente a este sentido negativo da secularização. Mesmo assim delimitada, no entanto, a secularização tem muitas faces, dependendo dos campos em que se manifesta: a teologia, ciência, ética, a hermenêutica bíblica, a cultura em geral, a vida cotidiana. Nesta meditação, tomo o termo em seu primordial. A secularização, como o secularismo, na verdade, derivam da palavra saeculum, que no uso comum termina por indicar o tempo presente (aeon atual, segundo a Bíblia), por oposição à eternidade (aeon futuro, “séculos dos séculos”, da Bíblia. NT: um período de tempo extremamente longo e indefinido). Nesse sentido, o secularismo é sinônimo de temporalidade, de redução do real somente à dimensão terrena.

A queda do horizonte da eternidade ou da vida eterna tem, sobre a fé cristã, o mesmo efeito que a areia jogada sobre uma chama: a sufoca, a apaga. A crença na vida eterna é uma das condições de possibilidade da evangelização. “Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão”. (1Cor 15,19).

2. A ascensão e a queda da idéia de eternidade

Recordemos brevemente a história da crença na vida após a morte, vai nos ajudar a medir a novidade trazida pelo Evangelho neste campo. Na religião hebraica do Antigo Testamento, essa crença se afirma tardiamente. Somente depois do exílio, diante do fracasso das expectativas temporais, nasce a ideia da ressurreição da carne e de uma recompensa após a morte para os justos, e ainda assim não todos a adotam (os saduceus, como sabemos, não partilham tal crença).

Isso desmente clamorosamente a tese daqueles (Feuerbach, Marx, Freud) que explicam a crença em Deus com o desejo de uma recompensa eterna, como projeção no além de expectativas temporais frustradas. Israel acreditou em Deus, muitos séculos antes do que em uma recompensa eterna no além! Não é, portanto, o desejo de uma recompensa eterna que produziu a fé em Deus, mas é a fé que produziu a crença em uma recompensa pós morte.

No mundo bíblico, temos a plena revelação da vida eterna com a vinda de Cristo. Jesus não estabelece a certeza da vida eterna sobre a natureza do homem, a imortalidade da alma, mas sobre “o poder de Deus”, que é um "Deus não de mortos, mas de vivos" (Lc 20, 38). Depois da Páscoa, a este fundamento teológico, os apóstolos acrescentarão o cristológico: a ressurreição de Cristo dentre os mortos. Nela, o Apóstolo fundou a fé na ressurreição da carne e na vida eterna: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Mas, na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1Cor 15, 12.20).

Também no mundo greco-romano assiste-se a uma evolução na concepção de vida após a morte. A mais antiga ideia é a de que a verdadeira vida termina com a morte; depois dessa existe somente um simulacro de vida, num mundo de sombras. Uma novidade se registra com o aparecimento religião órfico-pitagórica. De acordo com ela, o verdadeiro eu do homem é a alma, que, libertada da prisão (sema) do corpo (soma), pode finalmente viver sua verdadeira vida. Platão dará uma dignidade filosófica a esta descoberta, baseando-a na natureza espiritual e, portanto, imortal, da alma [1].

Essa crença permanecerá, no entanto, sendo minoritária, reservada aos iniciados nos mistérios e aos seguidores de escolas filosóficas especiais. Para a massa, persistirá a antiga crença de que a vida real termina com a morte. São conhecidas as palavras que o imperador Adriano dirigi a si próprio próximo de morrer:
“Pequena alma, alma terna e inconstante,
companheira do meu corpo, de que foste hóspede,
vais descer àqueles lugares pálidos,
duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora.
Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares,
os objetos que certamente nunca mais veremos...” [2].

Entende-se neste contexto o impacto que devia ter a mensagem cristã de vida após a morte infinitamente mais plena e mais alegre do que a da terra; também podemos entender por que a ideia e os símbolos da vida eterna são tão comuns nas sepulturas cristãs das catacumbas romanas.

Mas o que aconteceu à ideia cristã de uma vida eterna para a alma e para o corpo depois de ter triunfado sobre a ideia pagã de “escuridão além da morte”? Ao contrário do momento atual, no qual o ateísmo é primariamente expresso na negação da existência de um Criador, no século XIX, ele se expressava na negação da vida após a morte. Acolhendo a afirmação de Hegel, segundo a qual “os cristãos desperdiçam no céu a energia destinada à terra”, Feuerbach e principalmente Marx combateram a crença na vida após a morte, sob o pretexto de que aliena o compromisso terreno. À ideia de uma sobrevivência pessoal em Deus, se substitui uma ideia de sobrevivência na espécie e na sociedade do futuro.

Pouco a pouco, recaiu sobre a palavra eternidade a suspeita e o silêncio. O materialismo e o consumismo completaram a obra nas sociedades opulentas, fazendo parecer inconveniente que se fale ainda de eternidade entre pessoas cultas e em sintonia com os tempos. Tudo isso provocou claramente um retrocesso na fé dos crentes que, com o tempo, fez-se tímida e reticente sobre este ponto. Quando ouvimos o último sermão sobre a vida eterna? Continuamos a rezar o Credo: “Et expecto resurrectionem mortuorum et vitam venturi saeculi” (“E Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”), mas sem dar muito peso a estas palavras. Kierkegaard tinha razão quando escreveu: "A vida após a morte tornou-se uma piada, uma necessidade tão incerta que não só ninguém respeita, mas nem mesmo se cogita que exista, ao ponto que se divertem com o pensamento de que houve um tempo em que esta ideia transformava a toda a existência” [3].

Qual é o efeito prático desse eclipse da ideia de eternidade? São Paulo refere-se à intenção daqueles que não acreditam na ressurreição dos mortos: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1Cor 15,32). O desejo natural de viver sempre, distorcido, torna-se um desejo ou frenesi de viver bem, ou seja, agradavelmente, mesmo que às custas dos outros, se necessário. Toda a terra se torna o que Dante disse da Itália da sua época: "o canteiro que tão nos faz ferozes". Perdido o horizonte da eternidade, o sofrimento humano parece dupla e irremediavelmente absurdo.

3. A eternidade: uma esperança e uma presença

Ainda a propósito do secularismo, como para o cientificismo, a resposta mais eficaz não é combater o erro contrário, mas fazer brilhar novamente diante dos homens a certeza da vida eterna, confiando na força intrínseca que possui a verdade quando é acompanhada pelo testemunho de vida. "Sempre se poderá negar uma ideia com outra – escreve um antigo Padre – e uma opinião pode ser oposta à outra; mas o que poderá se opor a uma vida?”

Devemos também aproveitar a correspondência de tal verdade ao desejo mais profundo, ainda que reprimido, do coração humano. A um amigo que o repreendeu, quase como se seu desejo de eternidade fosse uma forma de orgulho e arrogância, Miguel de Unamuno, que não era um apologista da fé, disse em uma carta:

“Eu não estou dizendo que merecemos uma vida depois da morte, nem que a lógica nos mostre isso; estou dizendo que a necessito, mereça ou não, e nada mais. Estou dizendo que o que é passageiro não me satisfaz, que tenho sede de eternidade, e que, sem ela, tudo dá no mesmo para mim. Eu necessito disso, necessito! E, sem isso, nem a alegria de viver quer dizer coisa alguma. É muito cômodo dizer ‘temos de viver, temos de estar contentes com a vida!’ E os que não nos contentamos com ela?” [4].

Não é que desejasse a eternidade - acrescentava na mesma ocasião - desprezando o mundo e a vida aqui embaixo: “Eu amo tanto a vida que, perdê-la, parece-me o pior dos males. Não amam realmente a vida aqueles que vivem o dia a dia, sem preocupar-se por saber se vão perdê-la totalmente ou não”. Santo Agostinho dizia a mesma coisa: Cui non datur semper vivere, quid prodest bene vivere?, “De que serve viver bem, se não nos é dado viver para sempre?” [5]. “Tudo, exceto o eterno, é vão ao mundo”, cantou um dos nossos poetas [6].

Aos homens do nosso tempo, que cultivam no fundo do coração esta necessidade de eternidade, sem talvez ter a coragem de confessar a outros e nem para si mesmo, podemos repetir o que Paulo disse aos atenienses: “Pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio” (cf. At 17,23).

A resposta cristã ao secularismo, no sentido que entendemos aqui, não se baseia, como para Platão, em uma ideia filosófica - imortalidade da alma - mas em um evento. O Iluminismo tinha colocado a famosa pergunta de como é possível atingir a eternidade, enquanto você estiver no tempo, e como dar um ponto de partida histórico para uma consciência eterna [7]. Em outras palavras: como se pode justificar a alegação da fé cristã de prometer uma vida eterna e de ameaçar com uma pena igualmente eterna por atos realizados no tempo.

A única resposta válida para este problema é aquela baseada na fé na encarnação de Deus. Em Cristo, o eterno entrou no tempo, manifestado na carne; diante dele é possível tomar uma decisão para a eternidade. É assim que o evangelista João fala da vida eterna: “Vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós” (1Jo 1, 2).

Para o crente, a eternidade não é, como se vê, somente uma esperança, é também uma presença. Realizamos a experiência cada vez que fazemos um verdadeiro ato de fé em Cristo, porque todo aquele que nele crê “já possui a vida eterna” (cf. 1Jo 5,13), e toda vez que recebemos a comunhão, onde nos é dado “o penhor da glória futura” (futurae gloriae nobis pignus datur); toda vez que escutamos as palavras do Evangelho são “palavras de vida eterna” (Jo 6,68). São Tomás de Aquino também afirma que “a graça é o início da glória” [8].

Esta presença da eternidade no tempo é chamada Espírito Santo. Ele é descrito como “garantia da nossa herança” (Ef 1,14; 2Cor 5,5) e foi dada a nós porque, tendo recebido as primícias, nós ansiamos pela plenitude. “Cristo - escreve Santo Agostinho - nos deu o penhor do Espírito Santo com o qual ele, que não poderia enganar-nos, quis ter certeza do cumprimento de sua promessa. O que ele prometeu? Ele prometeu a vida eterna, cuja garantia é o Espírito Santo que nos foi dado” [9].

4. Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?

Entre a vida de fé no tempo e a vida eterna no tempo há uma relação semelhante à que existe entre a vida do embrião no seio materno e a do bebê, uma vez nascido. Cabasilas escreve:

“Este mundo traz, em gestação, o homem interior, novo, criado segundo Deus, para que ele, formado, moldado e tornado perfeito, não seja gerado àquele mundo perfeito que não envelhece. Como o embrião que, enquanto está na existência escura e líquida, a natureza prepara à vida na luz, é assim com os santos [...]. Para o embrião, no entanto, a vida futura é absolutamente futura: não chega a ele nenhum raio de luz, nada do que é desta vida. Não é assim para nós, do momento que o século futuro foi como derramado e misturado ao presente [...] Então, agora já é concedido aos santos não só dispor-se e preparar-se à vida, mas viver e atuar” [10].

Há uma história que ilustra essa comparação. Havia dois gêmeos, um menino e uma menina, tão inteligentes e precoces que, mesmo no útero materno, já conversavam entre si. A menina perguntava ao irmão: “Pra você, haverá vida após o nascimento?”. Ele respondia: “Não seja ridícula. O que faz você pensar que exista algo fora desse espaço estreito e escuro em que nos encontramos? A menina, criando coragem, insistia: “Talvez haja uma mãe, alguém que nos colocou aqui e que vai cuidar de nós.” Ele disse: “Você vê alguma mãe em algum lugar? O que você vê é tudo que existe”. Ela de novo: “Mas você não sente, às vezes, uma pressão no peito que aumenta dia a dia e nos impele para frente?”. “Pensando bem, ele respondeu, é verdade, sinto isso o tempo todo”. “Veja, concluiu, triunfante, a irmã mais nova, essa dor não pode ser para nada. Eu acho que está nos preparando para algo maior do que este pequeno espaço”.

Podemos usar esta simpática história quando tivermos de anunciar a vida eterna para as pessoas que perderam a fé nela, mas conservaram a nostalgia e talvez esperam que a Igreja, como aquela menina, as ajude a acreditar.

Há perguntas que os homens não deixam de fazer desde que o mundo é mundo e os homens de hoje não são exceção: “Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos”. Na sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”, Beda, o Venerável, relata como a fé cristã entrou no norte da Inglaterra. Quando os missionários, vindos de Roma, chegaram a Northumberland, o rei Edwin convocou um conselho de notáveis para decidir se permitiam a eles ou não, pelo menos, divulgar a nova mensagem. Um deles se levantou e disse:

“Suponha, ó rei, esta cena. Você se senta para jantar com seus ministros e líderes: é inverno, o fogo arde no meio e aquece a sala, enquanto lá fora, a tempestade grita e a neve cai. Um passarinho entra pela abertura de uma parede e sai imediatamente do outro lado. Enquanto está dentro, está protegido da tempestade de inverno mas, depois de desfrutar o calor rapidamente, apenas desaparece de vista, perdendo-se no inverno escuro de onde veio. Assim parece ser a vida do homem na terra: ignoramos tudo o que a segue e que a precedeu. Se esta nova doutrina nos traz algo mais seguro sobre isso, acho que deve ser acolhida” [11].

Quem sabe se a fé cristã não pode voltar à Inglaterra e ao continente europeu pela mesma razão pela que fez sua entrada: como a única que tem uma resposta definitiva a dar às grandes interrogações da vida terrena. A melhor oportunidade de transmitir esta mensagem são os funerais. Neles, as pessoas estão menos distraídas que nos outros ritos de passagem (Batismo, Casamento); eles questionam o seu próprio destino. Quando se chora por um ente querido, se chora também por si mesmo.

Certa vez ouvi um interessante programa da BBC inglesa sobre os chamados “funerais seculares”, com a gravação ao vivo de um deles. Em certo momento o mestre de cerimônias dizia aos presentes: “Nós não devemos ficar tristes. Viver uma vida boa, satisfatória, por 70 anos (a idade da falecida), é algo pelo qual se deveria ser grato”. “Grato a quem?”, me perguntava. Tais funerais não fazem mais que deixar evidente a derrota total do homem frente à morte.

Os sociólogos e estudiosos da cultura, chamado a explicar o fenômeno dos funerais seculares ou “humanistas”, viam a causa da propagação desta prática em alguns países do norte da Europa no fato de que estes funerais religiosos envolvem os presentes numa fé que não se sentem à vontade para compartilhar. A proposta sugerida era: a Igreja, nos funerais, deveria evitar qualquer menção a Deus, à vida eterna, a Jesus Cristo morto e ressuscitado, e limitar seu papel ao de “organizadora natural e experiente dos ritos de passagem”! Em outras palavras, resignar-se à secularização inclusive da morte!

5. Vamos à casa do Senhor!

Não precisamos de uma fé renovada na eternidade somente para evangelizar, isto é, para o anúncio aos outros, precisamos dela, mesmo antes, para dar um novo impulso à nossa caminhada rumo à santidade. O enfraquecimento da ideia de eternidade atinge também os crentes, diminuindo neles a capacidade de enfrentar com coragem o sofrimento e as provas da vida.

Pensemos em um homem com uma balança na mão: uma daquelas balanças se equilibram com uma mão e tem de um lado um prato onde se colocam as coisas para pesar e do outro uma barra que marca o peso ou a medida. Se cai no chão ou perde a medida, tudo o que e colocado no prato levanta a barra e inclina a balança. Até um punhado de penas.

Assim somos nós quando perdemos o peso, a medida de tudo que é a eternidade: as coisas e os sofrimentos terrenos levam facilmente nossa alma ao chão. Tudo parece muito pesado, excessivo. Jesus dizia: “Se tua mão ou teu pé te leva à queda, corta e joga fora. É melhor entrares na vida tendo só uma das mãos ou dos pés do que, com duas mãos ou dois pés, seres lançado ao fogo eterno. Se teu olho te leva à queda, arranca-o e joga fora. É melhor entrares na vida tendo um olho só do que, com os dois, seres lançado ao fogo do inferno”. (cf. Mt 18,8-9). Mas nós, tendo perdido de vista a eternidade, achamos já excessivo que se nos peça fechar os olhos a um espetáculo imoral.

São Paulo se atreve a escrever: “Com efeito, a insignificância de uma tribulação momentânea acarreta para nós um volume incomensurável e eterno de glória. Isto acontece porque miramos às coisas invisíveis e não às visíveis. Pois o que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno” (2Cor 4,17-18). O peso da tribulação é “leve, porque provisório, o da glória é enorme exatamente por ser eterno”. Por esta razão, o mesmo Apóstolo pode dizer: “Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que há de ser revelada em nós.” (Rm 8,18).

O cardeal Newman, que foi escolhido como mestre especial neste Advento, obriga-nos a adicionar uma verdade que falta na reflexão realizada até agora sobre a eternidade. Ele faz isso com o poema "O Sonho de Gerôncio", com música do grande compositor inglês Edgar Elgar. Uma verdadeira obra-prima pela profundidade de pensamento, pela inspiração e dramaticidade lírica.

Descreve o sonho de um ancião (o que significa o nome Gerontius-Gerôncio) que se sente perto do fim. A seus pensamentos sobre o sentido da vida, a morte, o abismo do nada no qual se precipita, se sobrepõem os comentários dos espectadores, a voz orante da Igreja: "Parte desse mundo, alma cristã” (proficiscere, alma christiana ), as vozes de contestação de anjos e demônios que pesam sua vida e reclamam sua alma. É particularmente bela e profunda a descrição do momento da morte e do despertar no outro mundo:

“Fui dormir, e agora estou renovado.
Um refresco estranho: por que eu sinto em mim
Uma leveza indescritível, e um sentido
De liberdade, como se eu finalmente fosse
E nunca tinha sido antes. Que paz!
Já não ouço mais que a incessante batida do tempo,
Não, nem me falta a minha respiração, ou o pulso;
Não é um momento diferente do outro” [12].

As últimas palavras que a alma pronuncia no poema são aquelas com as quais chega serena e até ansiosa ao Purgatório:

Lá cantarei o meu Senhor e amor ausente:
Leve-me embora,
Que, mais cedo eu possa subir, e ir acima,
E vê-Lo na verdade do dia eterno.” [13].

Para o imperador Adriano, a morte era a passagem da realidade às sombras; para o cristão John Newman ela é a passagem das sombras à realidade ex umbris et imaginibusin veritatem como quis que fosse escrito sobre seu túmulo.

Qual é, então, a verdade que Newman nos obriga a não manter em silêncio? Que a passagem do tempo à eternidade não é retilínea e igual para todos. Há um juízo para enfrentar, um juízo que pode ter dois resultados muito diferentes, o inferno ou o paraíso. A espiritualidade de Newman é austera, inclusive rigorosa, como a do Dies irae, mas que salutar nessa época inclinada a tomar tudo como brincadeira, como dizia Kierkegaard, com o pensamento da eternidade!

Elevemos o nosso pensamento à eternidade com renovado ímpeto. Repitamos a nós mesmos as palavras do poeta: “Tudo, exceto o eterno, o mundo é em vão.” No saltério hebraico há um grupo de salmos, chamados de “salmos de ascensão” ou “cânticos de Sião”. Eram os salmos que os peregrinos israelitas cantavam quando saíam em peregrinação à cidade santa, Jerusalém. Um deles começa assim: “Fiquei alegre, quando me disseram: Vamos à casa do Senhor!”. Estes salmos de ascensão tornaram-se os salmos de quem, na Igreja, segue a caminho da Jerusalém celeste; são os nossos salmos. Comentando sobre as palavras iniciais do salmo, Santo Agostinho dizia a seus seguidores:

“Corremos porque vamos para a casa do Senhor, corremos porque uma corrida como essa não cansa; porque chegaremos a uma meta onde não existe cansaço. Corramos à casa do Senhor e nossa alma se alegra por aqueles que repetem essas palavras. Estes viram primeiro que nós a pátria, os apóstolos a viram e nos disseram: “Corram, apressem-se, venham atrás! Vamos para a casa do Senhor!” [14].

Temos diante de nós, nesta capela, uma esplêndida representação em mosaico da Jerusalém celeste, com Maria, os apóstolos e uma longa procissão de santos orientais e ocidentais. Eles repetem silenciosamente este convite. Aceitemo-lo e levemo-lo conosco nesta jornada e ao longo da vida.

--- --- ---

Notas

[1] Cf. M. Pohlenz, L’uomo greco, Florença 1967, p. 173ss.

[2] Animula vagula, blandula, In ‘Memórias de Adriano’, p. 251, Editora Circulo do Livro, 1974

[3] S. Kierkegaard, Postilla conclusiva, 4, in Opere, a cura di C. Fabro, Firenze 1972, p. 458.

[4] Miguel de Unamuno, “Cartas inéditas de Miguel de Unamuno e Pedro Jiménez Ilundain,” ed. Hernán Benítez, Revista de la Universidad de Buenos Aires, vol. 3, no. 9 (Gennaio-Marzo 1949), pp. 135. 150.

[5] S. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de João, 45, 2 (PL, 35, 1720).

[6] Antonio Fogazzaro, “A Sera,” in Le poesie, Milano, Mondadori, 1935, pp. 194–197.

[7] G.E. Lessing, Über den Beweis des Geistes und der Kraft, ed. Lachmann, X, p.36.

[8] S. Tomás deAquino, Somma teologica, II-IIae, q. 24, art.3, ad 2.

[9] S. Agostinho, Sermo 378,1 (PL, 39, 1673).

[10] N. Cabasilas, Vida em Cristo, I,1-2, UTET, 1971, pp.65-67.,

[11] Beda, o Venerável, Historia ecclesiastica Anglorum, II, 13.

[12] O sonho de Gerôncio, in Newman Poeta, a cura di L. Obertello, Jaka Book, Milano 2010, p.124

[13] O sonho de Gerôncio, in Newman Poeta, a cura di L. Obertello, Jaka Book, Milano 2010, p.124

[14] S. Agostino, Enarrationes in Psalmos 121,2 (CCL, 40, p. 1802).